terça-feira, 11 de maio de 2010

Regra e exceção

   Visto que a primazia dos interesses individuais e privados sobre os gerais e públicos é um fenômeno restrito na história humana, limitando-se temporalmente aos últimos quatrocentos anos da espacialmente limitada cultura ocidental; os cientistas das humanidades prontamente concluem que tal primazia constitui a exceção, não a regra. De fato, dentro de seu limitado campo de conhecimento, eles encontram-se plenamente justificados em realizar tal inferência. Tanto o passado da cultura ocidental, partindo dos primórdios homéricos e pré-homéricos, passando pela polis clássica e chegando ao feudalismo medieval, quanto as demais culturas indo americanas, orientais e africanas, apresentam, todas elas, a primazia inversa. Porém, como a história da humanidade é apenas uma pequena fração de uma história muito mais ampla, i.e., a dos seres vivos, a história natural, percebemos que aqueles povos que, pensava-se, constituíam a regra, são a verdadeira exceção.
   Quando temos um conjunto de coisas que se comportam segundo uma regra geral e nos defrontamos com alguns de seus membros que fogem a essa regra, procuramos sempre conhecer quais são as circunstâncias particulares que possibilitaram essa exceção. Devido a esse procedimento, os cientistas das humanidades julgaram ser o capitalismo a raiz do “mal” dos modernos, do nosso individualismo possessivo – e isso conduziu a todo tipo de calúnia e difamação ao liberalismo; Hobbes e Locke foram condenados a fogueira como bruxos do poder constituído e suas filosofias reduzidas a ideologias interesseiras. Porém, como, a luz da filosofia da natureza, “regra” e “exceção” foram invertidas, o que reclama a nossa atenção são as circunstâncias particulares que conduziram a maioria das sociedades humanas a colocar os valores públicos acima dos privados. Ora, o que distingue o homem dos demais seres da natureza é a sua atividade simbólica – atividade simbólica essa que foi sendo gradativamente questionada e minada nos últimos quatrocentos anos por aquela mesma cultura que, coincidência ou não, fugiu a “regra”. É preciso uma hermenêutica dos mitos fundantes e da religião, uma que mobilize todo o nosso atual arsenal epistêmico: da lógica à psicanálise, sem dispensar, é claro, as ciências humanas, contanto que se utilize a história em perspectiva comparada com a história natural e a sociologia e antropologia como ciências mais complexas que a biologia, mas compreendidas a partir dela (tal como a química em relação a física e essa a matemática). Salvaremos, então, Hobbes e Locke da mácula que os envolveu, devolvendo-lhes a dignidade de cientistas da natureza e, talvez, possamos ser gratos a modernidade por ela ter nos restituído a liberdade.

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