terça-feira, 26 de julho de 2011

Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres



Como hoje ninguém mais tem saco para os fundamentos e as discussões verdadeiramente filosóficas e como eu não tenho saco para o destrinchar estéril de argumentos e o preencher inútil de páginas dos filosofólogos, i.e., dos acadêmicos ("inútil" não! justiça seja feita, pois gera milhares de empregos nas indústrias de papel), decidi imitar Diógenes Laércio e escrever o meu Vidas dos Filósofos, certo de que com isso cairei no gosto do nosso homem contemporâneo, sempre ansioso por biografias dos “grandes homens”, que o divirtam e o distraiam do grande fastio que são as suas. Já até visualizo, com isso, a minha obra se tornando best-seller e figurando na Veja e na Zero Hora como “Um dos maiores livros de todos os tempos [da última semana]”. Eu faço o que o público quer e ele me retribui com grana – bravo novo-mundo! – e ainda serei aclamado por ele como - ah! estou emocionado – “Filósofo”. 

Vamos começar, então, por Wittgenstein, pois ele é um daqueles “gênios incompreendidos” que adoramos ver no cinema, a fim de depois posar de intelectual e impressionar a namorada, citando Nietzsche, Van Gogh e Dostoievski, e comentar como a sociedade foi injusta com esses homens – isso, é claro, depois de se livrar daquele amigo chato e meio louco que só consegue nos colocar pra baixo.
Wittgenstein, na verdade, poucos sabem, foram dois. Wittgenstein I – nós brasileiros, pouco acostumados com os títulos de nobreza da aristocracia européia, dizemos “primeiro Wittgenstein” – foi um filósofo dos tradicionais (os “pqp’s”). Dotado de incrível inteligência matemática e raciocínio lógico, passou de engenheiro aeronáutico – profissão precoce onde inventou, com apenas 18 anos, um motor a jato – para a matemática aplicada e dessa para a pura, e da pura para os fundamentos da matemática, i.e., pela filosofia da matemática, ele só não chegou a Deus, porque Russell, filósofo esquizofrênico e freqüentador de bordeis, contaminou a genialidade daquele com a sua estapafurdice disfarçada de inteligência. Embora o axioma da infinitude de Russell tenha impedido Wittgenstein Pai de chegar ao ser perfeito e infinito1 – e ele chegaria, não restam dúvidas! –, esse escreveu um livro onde se vinga de seu traiçoeiro mestre2, o Tractatus Lógico-Philosophicus. No Tractatus Wittgenstein afirma que as relações entre os objetos não são reais, querendo dizer com isso que nunca teve relações com Russell – ontologicamente falando –, embora o filósofo gagá defendesse com unhas e dentes a realidade da relação. Outra afirmação do livro é que toda a filosofia não passou de um mal entendido a cerca da linguagem, esse mal entendido residiria na função da cópula: acredito que ele estava tentado, com isso, mostrar a Russell que mesmo tendo havido cópula, isso não implicava numa relação. Não se sabe bem ao certo a razão da morte de Wittgenstein I, mas se conjectura que teria tido um enfarto ao ver a ascensão dos regimes democráticos: filósofo circunspecto, reagia extremamente mal a opiniões pouco embasadas e confusão conceitual.
Wittgenstein II foi o extremo oposto do pai. Rebelde e revoltado, associou-se desde cedo a turma dos filósofos malditos (mais conhecidos como “odaras”). Lia Nietzsche, Schopenhauer, Kierkegaard e, dizem as más-línguas, obras de cristianismo e misticismo. Certa vez, num congresso entre os pensadores do círculo de Viena, discípulos de seu pai (os chamados “positivistas lógicos”), ao ver um de seus autores prediletos, Heidegger, ser duramente  acusado de charlatanismo, cujas obras supostamente “não diziam absolutamente nada”, levantou-se em sua defesa: “Mas eu o entendo perfeitamente!”, para vergonha de seu pai e horror dos companheiros, que tiveram a certeza que o filho rebelde estava envolvido com drogas. A verdade é que Wittgenstein II tinha complexo de Édipo, não pela sua mãe, o qual ele não teve3 – seu pai, taciturno, jamais tivera mulheres e, reto, jamais freqüentara prostíbulos –, mas pela sua avó: toda a sua existência consiste na negação do estilo de vida paterno e na afirmação do estilo da avó. Seu sonho era tocar piano, mas seu pai obrigou-lhe a trabalhar: conseguiu emprego, então, numa creche, mas como odiava trabalho, espancava as criancinhas. Sua principal obra, Investigações Filosóficas, reiterava ironicamente a afirmação do pai de que toda a filosofia não passava de um mal entendido a cerca da linguagem, com a diferença que a do pai também se incluía. Dizia também que nem a linguagem nem o pensamento possuíam uma essência (tese presente na Teoria da Figuração de Wittgenstein I) e que a Lógica, a única musa pela qual o pai teve poluções noturnas, nada mais era do que um jogo de linguagem. Reduzir a lógica a um jogo foi um mecanismo psíquico com que o inconsciente de Wittgenstein II se libertou da repressão paterna e ele pode, então, se entregar de vez  ao seu vício, a jogatina. Suas últimas palavras foram: “Digam a todos [principalmente aos positivistas lógicos] que [ao contrário do meu pai] a minha vida foi maravilhosa”.

1 Pois aquele velho safado estava convencido de que não se podia contar sem que existisse no mundo um objeto a mais para cada número contado, de modo que sempre que Wittgenstein queria chegar a Deus lhe caia um objeto na cabeça.
2 Mais filho-da-mãe do que Platão para com Aristóteles, que, como todos sabem, legou o seu posto na academia ao sobrinho. Aristóteles, então, em vez de acusá-lo de nepotismo, procurou se vingar, assim como fazem todos os filósofos, refutando-o: nascia o argumento do terceiro homem.
3 Wittgenstein II é o resultado de uma experiência fracassada num laboratório nazista de criação de bebês arianos perfeitos, sua gestação in vitro foi interrompida pelos ataques dos Aliados. A fertilização foi realizada com o sêmen do pai e o óvulo da avó, que era música e da qual Wittgenstein II herdou o gosto pela farra e boêmia.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Por uma psiquiatria individual

     É um erro classificar a fobia social como uma doença, sem mais, só porque a maior parte das pessoas são sociais. A boa medicina contemporânea[1] – não a da organização mundial de saúde, que estabelece arbitrariamente (ou melhor, segundo interesses burgueses de produtividade) definições de saúde sem qualquer embasamento biológico, pois biologicamente, levando em consideração o neodarwinismo, não há norma e, portanto, não há saúde –, bem como a psicanálise, admitem uma multiplicidade imensurável de variações das características humanas e uma singularidade inexorável de cada indivíduo. Afirmar que a fobia social é em si mesma uma doença é retroceder ao aristotelismo e postular uma sociabilidade inata a essência humana: “o homem é um animal social”; e isso, por que Aristóteles apoiava o conceito de normalidade no conceito de regularidade; “normal”, definia o filósofo, era o que acontecia “no mais das vezes”. Concepção superada pela bioquímica – que começa a abrir terreno hoje para uma futura medicina individual. É verdade que se a fobia social está afetando “negativamente” um individuo, impossibilitando a “expansão da sua personalidade”, como dizem os psicanalistas, e comprometendo a realização de seu projeto de vida, aí sim temos um problema; mas esse problema pode ser tão só a tentativa sempre frustrada de adequação a um padrão, de “enquadramento” – no sentido técnico lacaniano –, pelo não reconhecimento por parte do individuo que a sua “impotência é uma impossibilidade”. Porque a cultura, como imposição de normas e padrões para aquilo que é naturalmente único, internalizada como super-ego, reprime sempre as pulsões a ela contrárias.[2] Não só há indivíduos sem absolutamente necessidades sociais – não estou falando de necessidades pragmáticas (por exemplo, ter que se manter financeiramente), mas pulsionais  –, e infinitas graduações de sociabilidade, como há diferentes demandas subjetivas que levam os indivíduos a sociabilizar-se: alguns tem necessidade de muitas relações interpessoais para satisfação própria, outros são levados ao convívio social apenas por interesse sexual – tal como leopardos solitários que buscam um parceiro apenas na época de acasalamento. Por isso é necessário auto-conhecimento, mas não o “conhece-te a ti mesmo” socrático, feito pelo auto-exame consciente, pois a consciência é justamente em nós o produto da nossa cultura (a favor disso alegamos que a consciência opera com a linguagem e a linguagem é uma ferramenta social), de modo que sempre que julgamos a nós mesmos sob o ponto de vista consciente julgamos sob o ponto de vista do nosso rebanho, mas o saber inconsciente proporcionado pela análise e da fisiologia e bioquímica do nosso corpo singular.


[1] A medicina funcional, não a estrutural.
[2] A ignorância que os intelectuais das áreas das humanas tem em relação a natureza é repulsiva: resistem a todo custo ao determinismo natural, crentes que com isso salvam a subjetividade, quando é justamente na natureza que somos mais singulares. Se há algo que nos massifica é o âmbito social-cultural.