terça-feira, 8 de junho de 2010

O novo Lucky Strike

    O novo Lucky Strike vem numa carteira preta. O preto é luxuoso e está na moda. Os antigos computadores beges nos aparecem agora como velharia. E sujos. Por falar em informática, o novo Lucky Strike tem como logomarca o botão de ligar. Trata-se de um cigarro tecnológico e interativo: é igual ao branco, mas se preferirmos basta quebrar a ampola que tem dentro do filtro para que se torne mentolado. Sentimo-nos, assim, mais livres; é como poder entrar no MSN com o status invisível. O mercado em prol do nosso gozo e bem-estar. Pego agora minha carteira de cigarros e a viro de lado: Um defunto com o peito escancarado e uma narina no pescoço salta-me aos olhos, louco para arrancar o sossego dos impressionáveis. Acima da fotografia, uma única palavra, “Morte”, traz consigo um lacônico mau-agouro. O preto luxuoso instantaneamente se converte em preto fúnebre, macabro. Por livres-associações, chegam-me a mente faixas anarquistas alertando para o mal da moda, do luxo, do capitalismo. Faixas anarquistas porque é o novo Lucky Strike, mas poderiam ser comunistas caso fosse um Marlboro: não faz nenhuma diferença. Nem o atraente designer nem o cadáver me comovem. Não compro a felicidade que uns querem me vender, assim como não me assusto com a morte da qual outros querem me salvar. Abro a carteira e tiro outro: no mais, é um bom cigarro.





terça-feira, 1 de junho de 2010

A PARANÓIA A FAVOR DA METANÓIA

   “Quem não deve não teme” é uma máxima que ainda hoje permeia o nosso senso comum. Devido a ela, mais precisamente ao seu espírito em qualquer letra que se incorpore, é que se atribui certa culpa ao homem paranóico pelas suas paranóias. Sua origem está no conceito judaico de pecado, bem como no de responsabilidade das éticas clássicas gregas, e vem subsumida no conceito de livre-arbítrio comum a ambos. A verdade, sabe a psiquiatria e a psicologia atual, é o inverso: não é porque se sente culpado que o homem paranóico desconfia, mas porque desconfia é que passa a se sentir culpado. Quem sofre de síndrome paranóide costuma desconfiar das coisas que lhe são mais caras: uma mulher que preza a fidelidade e zela pelo matrimônio pode vir a desconfiar que os outros a julguem adúltera ou “oferecida”. O problema – e isso os homens sãos parecem incapazes de compreender – é que os paranóicos desconfiam de si mesmos. Influenciada pela opinião geral e pela máxima supracitada essa mulher irá encontrar em fatos insignificantes do seu passado indícios desproporcionais de sua culpa: certa vez ela achou um homem bonito e não conseguiu disfarçar seu vislumbre; doutra feita foi “cantada” e, embora reta em seu pacto conjugal, não deixou de se alegrar espontaneamente com a vaidade satisfeita. Fatos humanos e inevitáveis que aos olhos do paranóico ganham nova dimensão e ofuscam a verdade. Essa mulher, então, sentindo-se culpada não passaria a se comportar estranhamente para com seu marido até que esse “percebesse” o motivo de sua estranheza? “Quem não deve não teme”.

Outro exemplo, um homem de caráter correto e que age moralmente não com interesse de aparentar algo, mas em virtude de seus princípios éticos, pode, se acometido pela paranóia, encontrar na memória ocasiões em que exibiu publicamente suas ações a fim de elevar um pouco o seu ego e devido a isso passar a acreditar que o propulsor primeiro dessas ações não foi os seus princípios, mas o interesse pela fama e reputação. Em seguida, como é próprio ao ruminar incessante dessa síndrome, esse homem pode passar a “descobrir” interesses ocultos e dissimulados nas demais ações, até mesmo naquelas cuja mola propulsora fora de fato o imperativo de sua índole – suposição para efeito de argumentação, sem entrar na questão da possibilidade real de tal tipo de ação. Como se comportaria um homem assim atormentado por tais pensamentos em suas próximas ações? E sempre que se comentasse a respeito da incorretude moral de se praticar uma ação boa visando outra coisa que não o próprio bem, o nosso homem não exibiria um sinistro olhar que o “entregaria” completamente? Como esses mantos de reflexão, colocados uns sobre os outros, não turvariam a consciência desse pobre homem e tornariam a sua existência culpada e miserável? “Pronto!”, julgaríamos revelado, “sua desconfiança não é gratuita”. No paranóico, a verdade sobre si mesmo é devastada pela mentira de sua doença.

Esse mal que, segundo Freud, nenhum homem mais foge na nossa cultura possui dupla causa. O tratamento de sua causa química está nas mãos da medicina psiquiátrica que já tem obtido resultados bastante favoráveis na elaboração de medicamentos. A outra causa, está em nossas mãos, homens da cultura, e consiste em não mais prestar ouvidos a filosofias velhas e seus velhos preconceitos. Na atualidade científica, para a qual, se a liberdade não é uma inteira quimera, é algo bastante limitado e sempre restringido pela causalidade natural em que nós, seres naturais, também estamos submetidos, os moralistas procuram defender a idéia de que o superego é indispensável para que não nos dissolvamos na mais horrenda perversão e de que, embora não possamos o satisfazer plenamente, ainda necessitamos dele como um racionale e faculdade de orientação sem o qual a vida perde todo o sentido: Tudo isso é uma grande petição de principio. O preço que o superego nos cobra é alto demais para o id que mais fundamentalmente somos e embora eu não possa – contrariamente ao que pensam os ingênuos – me desfazer inteiramente de todas as amarras morais que a minha educação enraizou até o mais profundo cerne do meu sujeito constituído, posso, assim como fizeram Montaigne e Nelson Rodrigues, Nietzsche e Raul Seixas, contribuir com um pequeno passo – passo esse dado por esses homens e que fizeram com que minha sociedade fosse bem mais suportável que as suas – para a metanóia e libertação do homem.