terça-feira, 29 de março de 2011

Arte e Valor

O presente trabalho pretende fazer uma apresentação de como dois críticos de arte, Clement Greenberg e Harold Rosenberg, procuram fundamentar a experiência estética de duas diferentes correntes de vanguarda, respectivamente, a arte abstrata e a action painting (gestualismo), bem como o valor do objeto artístico na arte moderna e contemporânea. Clement Greenberg enfatiza o caráter formal da arte de vanguarda, mostrando como o abstracionismo se deriva de uma supressão do tema/conteúdo em prol da imitação dos próprios meios da produção artística. Harold Rosenberg, por sua vez, procura mostrar como a subjetividade do artista, inserido em seu contexto social e político, não pode ser isolado da apreciação da obra de arte final, uma vez que a arte, ao menos a action painting, é essencialmente uma ação e, visto que se deriva do expressionismo abstrato, trás junto consigo a crise e o desespero que impulsionam o artista a ação criativa. Já no que diz respeito ao valor da obra de arte, Greenberg ressalta a arte abstrata como o último estágio de uma evolução histórica e, portanto, como a mais superiora forma de arte relativamente a essa realidade histórica. Rosenberg, por outro lado, ao associar a sua corrente com uma metafísica da individualidade, reivindica para ela o mérito da fidelidade para com a tradição que toma o ser humano como tema supremo da pintura.


Clement Greenberg

Um fenômeno filosófico que mudou os rumos da cultura ocidental e balizou o século XIX foi o historicismo. Certamente esse fenômeno teve como principal pioneiro o pensamento hegeliano; embora tenham existido manifestações anteriores da ênfase na história para o empreendimento de compreensão da realidade, como é o caso da filosofia de Vico, nenhuma dessas atingiu grau de influencia e relevância próximos da filosofia de Hegel. A importância da história para o pensamento do século XIX pode ser ilustrada através de dois dos seus maiores representantes, Marx e Nietzsche. Ambos atribuem um papel fundamental a ela: para o primeiro, o materialismo histórico; para o segundo, o método genealógico. Sob o influxo do conhecimento histórico, ocorreu um alargamento da consciência dos indivíduos cultos; esses, ao reconhecerem a gênese de sua cultura e valores, reconheceram, ao mesmo tempo, o seu caráter contingente – uma vez que se originam de circunstancias históricas particulares. Com isso, o peso normativo desses valores foi comprometido; a tradição já não era mais acatada de forma inconteste. O conhecimento das relações causais que engendraram os múltiplos aspectos da realidade que lhes era atual permitiu aos indivíduos colocar tudo aquilo que até então havia sido tomado como as mais sagradas verdades sob suspeita. Surgia uma aguda crítica da sociedade e da história e, com essa, uma onda de negação dos valores tradicionais. Politicamente, essa onda se manifestou nos ideais revolucionários, como o marxismo e o anarquismo; esteticamente, surgia a boêmia e a vanguarda.
Com a dessacralização dos padrões sociais dominantes, operado pela crítica social, a antiga concepção sacra da arte, ou a serviço do sagrado, tornava-se obsoleta. No âmbito político, em virtude da revolução industrial, a burguesia tomava a posição antes ocupada pela aristocracia, de tal modo que a concepção de arte como educadora do caráter, do bom gosto e refinamento também perdia sentido. Qualquer papel formador ou moral que a arte havia tido até então passou a ser desprezado. Em suma, se a arte dependesse de qualquer ideal político, religioso ou ideológico, visto que esses estavam em ruínas, ela também estaria. A solução foi desvincular a arte de qualquer função pedagógica: surgia o esteticismo e o seu lema da “arte pela arte”. Ao mesmo tempo que a arte reclamava autonomia, os artistas se viam envoltos por um grande paradoxo: sua boêmia e sua arte pela arte consistia numa negação da burguesia e dos seus interesses filisteus; mas eles ainda dependiam das finanças burguesas para que pudessem continuar produzindo. Eles dependiam daquilo mesmo que repudiavam; só o patrocínio e a existência de um público burguês garantiam aos artistas as condições necessárias para que esses continuassem criando e fazendo arte – e desdenhando a burguesia. Essa contradição transformou o desprezo pela burguesia em desprezo por toda sociedade e pelos assuntos sociais e esse desprezo foi sentido pelos artistas como realização do seu projeto: arte pela arte. Como reflexo, as novas obras de arte fugiam ao tema, pois o tema imitava a realidade e a realidade continha um paradoxo que se desejava a todo custo evitar. Os artistas se voltaram então para o seu meio técnico de produção artística numa busca pela pureza da arte, i.e., daquilo que é essencial a ela, isolando-a do meramente contingente. É contingente a arte aquilo que não é arte, a dimensão política, ideológica ou religiosa que ela possa vir a adquirir. Tampouco é arte a expressão de sentimentos (como queria o romantismo) ou a comunicação de idéias ou qualquer outra coisa que diga respeito à subjetividade do artista. Além disso, é contingente para uma certa arte tudo aquilo que ela toma emprestado ou procura imitar de outras – “confusão das artes” –, como por exemplo quando uma pintura representa uma cena literária. É essencial a arte o meio que ela utiliza para se realizar: tintas, pincel e pinceladas no caso da pintura e suporte material no caso da escultura.
Com a supressão do tema, a arte abstrata erige a própria forma como seu conteúdo. Em virtude da valoração do meio, a pintura abstrata procura recuperar a planaridade própria a bidimensionalidade da tela e a escultura procura deixar, aqui e ali, partes do material original não esculpido ou uma textura não acabada (uma superfície de pedra não polida, tábuas ainda com felpas ou rachaduras na argila). Visto não imitar nada na natureza (ela imita a imitação, dirá Greemberg, i.e., os meios de produção artística), a arte abstrata não depende de nada externo a ela, ela vale por seus próprios termos e, assim, toca o absoluto. O novo artista brinca de Deus ao criar algo que, tal como o mundo, não pode ser reduzido a nenhum referente externo ou modelo original.
Essas considerações históricas a cerca dos motivos pelos quais a arte suprimiu o objeto/tema, bem como certo conhecimento dos meios técnicos da produção artística, além da intenção do artista de fazê-los transparecer em sua obra, se mostram, portanto, indispensáveis, não só para reconhecer o lugar da arte abstrata dentro da história da arte, mas, antes disso, para que ela seja capaz de despertar no receptor a experiência estética ao qual se propõe:

“Os valores últimos que o espectador culto encontra na pintura de Picasso são obtidos num segundo momento, como resultado da reflexão sobre a impressão imediata deixada pelos valores plásticos. E só então entram em jogo o reconhecível, o miraculoso e o evocativo. Estes não estão imediata ou externamente presentes na pintura de Picasso, precisando ser nela projetados pelo espectador sensível o bastante para reagir adequadamente a qualidades plásticas. Pertencem ao efeito ‘refletido’”

Deste modo, temos que a experiência estética depende da capacidade do receptor de refletir a cerca das qualidades plásticas em articulação com a realidade histórica e a evolução da arte. Mas, se por um lado a experiência estética da arte abstrata depende das condições subjetivas do receptor, no sentido de estar historicamente pronto para ela,
a altura de fazer a reflexão adequada sobre ela, o valor das obras de arte são objetivos – para a consciência coletiva da elite cultural de determinado tempo histórico. Essa objetividade se deve a evolução da história da arte. A arte abstrata é a melhor arte da atualidade devido a “um momento particular alcançado numa tradição particular de arte”; não há nada que a faça, dissociada da história, superiora as demais; sua superioridade não é metafísica, é válida nesse momento específico e de modo algum perpetuará eternamente.



Harold Rosenberg

Rosenberg afirma que a arte carrega consigo o artista, que a experiência estética da obra de arte não pode abrir mão do processo de criação e do fazer – artístico –, e que faz parte desse processo não só a ação e os gestos do artista, mas antes disso o contexto político onde ele se inicia, bem como o conhecimento pessoal do artista no momento da
criação. Fazer arte é agir e a ação artística é também uma ação política: “O pintor americano descobriu uma nova função para a arte como a ação que pertencia a ele próprio”. A principal característica da arte de vanguarda é que ela surge de uma crise não só da arte, mas de toda a sociedade:

“Quando se elimina da interpretação da obra os sinais que apontam para a situação do artista e as conclusões que ele extrai dela, o saldo final é substituir uma apreciação da dinâmica de crise da pintura contemporânea por um profissionalismo árido que é uma caricatura do esteticismo de meio século atrás”

O lema da arte pela arte elimina a experiência pessoal do artista, os seus sentimentos de confrontação, de impasse, de purificação enquanto cria. A action painting procura ser uma linguagem de descontentamento social e, além disso, recuperar o sentido metafísico da arte. Seu problema metafísico é o da individualidade: o artista ao pintar luta por uma identidade, essa luta pela identidade através da arte constitui a vida do artista, a vida do artista é uma afirmação da existência individual e da liberdade individual, o artista reproduz na força dos seus gestos, que resultam em manchas rompantes de tinta, o seu desespero em querer ser “Eu mesmo”. A action painting recupera o caráter ritualístico da arte, esquecido desde os gregos, a sua magia consiste na dança do dripping, i.e., em todos os gestos habituais envolvidos no fazer artístico agora executados automaticamente e segundo o impulso do desespero:

“O conteúdo da action painting é o drama de criação do artista no beco sem saída de uma época que identificou seus problemas mas deixou que eles se tornassem incontroláveis. Nessa situação, o desempenho criativo tem sido, via de regra, uma fase num ritmo de confusão, sofrimento, relaxamento e até autodestruição – ou, nos termos da fórmula de Thomas Mann, da aliança da criação com a doença, ao mesmo tempo moral e física.”

As pinturas são resultado dos pintores, não se geram umas das outras segundo uma lei impessoal. A arte é ação e a ação produto de uma crise. “Esquecer a crise –individual, social, estética – que gerou a action painting, ou ocultá-la, é distorcer de maneira grotesca a realidade da arte americana no pós-guerra”. A action painting possui uma contradição fundamental que a torna apropriada para a época de crise, seu dilema consiste em seu estatuto um tanto quanto dúbio: 1) não é pura ação, porque se o fosse não geraria pinturas e não seria arte, mas vida; 2) a sua pintura, que é produto da ação, não se basta em si mesma; o caráter de arte da obra está na conjunção entre pintura e ação. Pollock literalmente entrava dentro da pintura, mas no sentido figurado todo artista do expressivismo abstrato entra dentro da pintura, ao se marcar nela. O valor da arte consiste em não se reduzir a mediocridades formalistas que negam a individualidade e o ser humano como tema supremo da pintura. A respeito disso, Allan Kaprow diz:

“Jackson Pollock talvez fosse a encarnação de nossa ambição por uma libertação absoluta e um desejo secretamente compartilhado de virar as velhas mesas cobertas de quinquilharia e champanhe choco”.