quinta-feira, 22 de julho de 2010

A chácara dos meus avós


             Só mesmo o homem da cidade para dizer que o homem do campo acorda com o cantar do galo. No campo, galos cantam a noite inteira, desregulados, e o colono não pode se dar ao luxo de prestar atenção a essa boemia cantoria. O homem do campo acorda, isso sim, com o despertar da natureza, quando os passarinhos começam uma nova festa pagã em homenagem ao deus Sol, plenos de alegria depois de uma escura noite de incerteza: “Voltará ainda o dia?”. Não que o homem do campo espere os passarinhos para levantar; ele não baseia o seu relógio na natureza, a natureza dentro dele é o seu relógio. O homem do campo está em unidade com a natureza e, independente da mudança das estações e dos fusos-horário, a natureza toda desperta quando o Sol lhes dá bom-dia.
            Comigo, criancinha urbana, a coisa era diferente. Acordava quando escutava o vozerio e o ruído de panelas na cozinha. Saia correndo, tomado da mais inocente alegria, até a cozinha para comer o carreteiro com café preto que meu avô preparava para os colhedores de uva. Não escovava os dentes nem limpava as remelas, pois vovô não dava importância alguma, toda aquela chatice de deveres ficava na cidade com minha mãe e as professoras. Quando me via, o velho de bombacha soltava um daqueles autênticos e contentes brados que só os homens do campo são capazes e me dava um abraço que me quebrava as costelas. Todos os trabalhadores me diziam “bom-dia!”, com aquela entonação que lhes é própria, e de pronto voltavam a sorver ruidosamente o chimarrão e a falar, como que cantando, dos seus assuntos. O carreteiro era de charque, feito em panela de ferro, em fogão a lenha e colher de pau. O fundo queimado meu avô sempre guardava para mim, embora ele também achasse aquela a melhor parte. A essa altura, umas seis e pouco da manhã, vovô já vertia o seu segundo copo de vinho, o que não tinha nada de anormal entre os agricultores de descendência italiana de Farroupilha. Quando ficava bêbado, era comum bater em minha vó, o que também não tinha nada de anormal. Nessas circunstâncias costumava  repetir: “O homem deve sempre bater em sua mulher, mesmo que ele não saiba por que está batendo, ela sabe por que está apanhando”. Mas esse não era meu vô, meu vô era um marido afetuoso e divertido, bom de fandango e trabalhador, e, o que era mais raro entre os “guascas” como ele, fiel; jamais violaria o juramento que fez na frente do padre. Doutra feita, numa de suas bebedeiras, correu de facão atrás dos meus primos mais velhos, que o provocavam; quanto a mim, ele nunca fez nada senão coisas boas, mas eu era o comportadinho da família. Quando se inventou o alcoolismo, foi que lhe disseram que estava doente; só então começou a se comportar como um: proibiram-no de produzir vinho e ele começou a beber escondido, da pura, nos botecos, e a  ser  encontrado caído nas ruas. Nessa época, vovó se apegou com toda força na religião, da qual sempre fora devota, até chegar ao fanatismo de uma velha carola. Isso não aconteceu porque ela apanhava de vez em quando de um marido que no mais era bom e alegre, mas só quando esse começou a adoecer porque descobriu que tinha uma doença.
            A minha memória, porém, é de épocas anteriores, época que minha vó rezava satisfeita e meu vô ria e dançava. Vovô era o melhor assador que conhecia: a picanha era sangrenta, a costela passada, a ovelha no ponto; e tudo com o sabor único da lenha de acácia negra. Se para os gaúchos em geral é um pecado um churrasco temperado com outra coisa além do sal grosso, para meu avô o pecado já começava usando-se carvão. Nas raras vezes que assava galeto, deixava as galinhas tortas de cachaça no dia anterior para amaciar-lhes a carne. Galinhas caipiras e bêbadas na salmoura de minha avó: a idéia de galeto ela mesma!
            Depois do carreteiro e do café preto, vovô e eu íamos cuidar da bicharada: abríamos o curral para o gado pastar; dávamos milho às galinhas; atirávamos pedaços de pão às carpas; colhíamos as verduras e legumes para o almoço e o que não prestava atirávamos aos porcos. Depois do mais divertido, vovô pegava na enxada e eu começava minha vida errante: ia até as parreiras ver os peões colhendo uva, depois voltava para “ajudar” meu vô na plantação, e, de pouco em pouco, ansioso, dava uma olhada em minha vó para ver se ela já tinha parado de rezar – a missa que a rádio aliança, a única estação religiosa da época, católica, transmitia diariamente e que vovó nunca “faltava”. Depois da missa, ela saía para tirar o leite do café e esse espetáculo, junto com a lida dos animais, eu jamais perdia. Naquela casa os horários eram outros, o que contribuía para o meu estado de êxtase permanente durante as férias. Se bem que, se há uma boa definição para a infância, essa é o estar em permanente estado de êxtase, onde tudo é novidade, alegria e fruição.
            O café da manhã estava na mesa lá pelas onze, meu avô chegava um pouco antes para tomar um mate e “prosear com a véia”. Embora o café fosse só para nós, a mesa parecia insinuar que todos os trabalhadores iriam invadir aquela porta, famintos. Pão caseiro, queijo colonial, salame, manteiga, morcilha, torresmo, schimier – de uva, é claro! –, mel e “leite da vaca”. Depois do café, vovô voltava  a pegar na enxada e vovó alimentava os cães – com a polenta que seu marido preparava de manhã cedinho junto com o carreteiro –, depois ela levava numa cesta o “almoço” dos colhedores de uva – o nosso café da manhã –, e, sem demora, voltava à cozinha para cuidar do nosso almoço. Até as quatro horas, quando o almoço estava pronto, eu brincava com os cães e os outros animais, ou ficava chateando o velho agricultor, perguntando-lhe o nome dos passarinhos, ou, se era verão, me atirava na cachoeira. No inverno, eu preferia ficar escutando a rádio aliança com minha vó, aquecido pelo fogão a lenha e admirado com sua devoção: contemplava a sua ladainha enquanto descascava aipim. Quando não tinha ninguém por perto, eu fazia algumas “artes”: atirava um cuscu contra um ganso para ver a natureza em ação; arrebentava minhocas; largava um gato no chiqueiro para ver seu arisco desespero com o alvoroço dos porcos...
            Depois do almoço, enquanto vovó lavava a louça, vovô e eu tirávamos a sesta. Quando acordava, ele não estava mais ali; batia-me então certo remorso – não é bem essa a palavra – muito comum na infância, que surge daquele sentimento de não sabermos se ainda é hoje ou se já é amanhã, somado ao arrependimento de ter desperdiçado dormindo o precioso tempo em que se poderia viver e brincar,  além de outros sentimentos muito estranhos e vagos, ruins e desnorteados, difíceis de explicar. Em seguida, encontrava minha avó cuidando das flores e começava a me recuperar: cuidar das flores era a sua maior fonte de prazer. Seus canteiros eram sempre coloridos e bem podados. Eu me entretia observando-as e perguntando pelos seus nomes, procurava as flores novas ou aquelas as quais eu havia esquecido o nome, o que era raro naquela época de memória fresca e de atenção toda voltada para o mundo ao redor, para a descoberta. Sim, eu havia sido um grande observador antes de me enterrar em mim mesmo! O gaúcho, por sua vez, no final da tarde, tratava de realizar a tarefa inversa do amanhecer: tocava o gado para o curral – ele brincava comigo: “toca gado!” –; prendia as meninas no galinheiro, etc. Quanto aos pavões, não era preciso fazer nada, empoleiravam-se na figueira e começavam a miar feito gatos tenores: essa é certamente uma das mais lindas cenas que o crepúsculo pode nos proporcionar. Também os patos, gansos e marrecos iam por sua própria conta até o açude, onde se colavam uns aos outros, com as cabeças embaixo das asas. À noite, vovô se dedicava inteiramente a mim: jogávamos canastra ou pife ou então íamos pescar e ele contava causos que me enchiam de medo – e como era gostoso aquele medo! –, causos que eram entrecortados por períodos de silêncio que duravam um longo palheiro. Era nesses momentos que eu sentia  a absoluta escuridão da noite contida no chirrear de uma coruja. Lá pelas onze horas jantávamos e depois nos preparávamos para ir dormir.
            Essa era a rotina inabalável da chácara de meus avós. Rotina que só se desfazia no sábado a noite, quando íamos ao CTG, ou no domingo, que costumava ter churrasco, pais, tios e primos. Havia também outra coisa que quebrava a rotina: os dias chuvosos. Esses eram incrivelmente mágicos e especiais, os trabalhadores não apareciam e ficávamos o dia inteiro na cozinha, jogando carta, tomando chimarrão, e ouvindo a rádio aliança. Foi num desses dias que meu avô falou algo que mudou para sempre minha sensibilidade: estávamos ambos olhando pela janela a chuva a cair nas flores, nas árvores e nas uvas, sentindo o cheiro da terra molhada, quando ele disse “Veja só como a natureza inteira está feliz”.   

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