quinta-feira, 7 de abril de 2011

Tour pela Costa Doce - Tapes e Arambaré

        No dia 15 de janeiro, farto de ser visto pelas criancinhas como uma espécie de bom velhinho que distribui picoles na praia - se bem que com certas criancinhas isso não era nada mal -, resolvi tirar umas férias da minha profissão de férias: sim, sou filósofo e picolezeiro. Tomei um ônibus para Tapes na rodoviária de Osório. Pretendia passar por Tapes, Arambaré, São Lourenço do Sul, Pelotas e Rio Grande. Foi o que fiz, só me arrependendo depois de ter feito a primeira parada. Tapes é incrivelmente feia e cinzenta. Possui  alguns prédios históricos, mas todos mal preservados e pequenos. Só fotografei a igreja na frente da praça central - não lembro o nome de ambas, sou péssimo com nomes - e o camping União, o lugar mais bonito da cidade - e olha que não é lá essas coisas -, onde pretendia passar a noite. Felizmente não tinha mais barraca disponível e pude me mandar para Arambaré. Minha impressão de Tapes foi tão negativa e lamentei tanto por vinte reais jogados no lixo que a zanga do meu inconsciente tratou de apagar as poucas fotos da cidade, ainda que a consciência - sempre nos enganando - quis me fazer crer que a causa fosse minha imperícia com a recém adquirida Kodak 14megapixels. Arambaré foi o extremo oposto! Extremamente pequena, com só quatro bairros, essa cidadezinha conquistou meu coração. A começar pelo difícil acesso em estrada de chão batido que se estende por quilômetros. As plantações de arroz da região atraem muitos passarinhos que ficam pela estrada e adoram perigo, pois só batem em arrevoada quando o ônibus já está em suas colas: pardais, pombinhas-rola, anuns solitários, ticos-ticos ainda são comuns por lá, varios grupos de azulões e muitos cardeais - dos de cabeça vermelha tinha vários, mas tive a dádiva de ver um de cabeça amarela, raríssimo! Infelizmente a estrada será asfaltada, o que vai acabar com aquela áurea de paraíso-perdido que tanto me impressionou em Arambaré. Bom, pelo menos a sua pontezinha singela de uma única mão vai permanecer, juntamente com as filas de carros que esperam pacientemente a travessia de um trator ou carroça que vêm da direção contrária.






da ponte eu não esqueci o nome






       80% da população de Arambaré é composta por pessoas de Novo Hamburgo, o que me fez sentir em casa - sou hamburguense. Não é preciso falar, então, que lá está cheio de lindas "alemoazinhas" (sic) recatadas e de olhos azuis - que saudade que eu sentia delas depois de um mês em meio aquela beleza vulgar e trivial dos corpões bronzeados e padronizados da playboyzada de Tramandaí! O mesmo aconteceu com a música, depois de um mês tendo meus ouvidos mijados por funk e sertanejo da moda, adivinha o que eu ouço sair de uma casa?  Queen! Vocês sabem o que é ouvir a voz de um Fred Mercury depois de tanto tempo ouvindo, todo santo dia, a mesma coisa saindo de carros todos iguais com os mesmos bonecos-autômatos de óculos escuros, corpos sarados, caras de bad boy e cérebros de pinico? Quem já experimentou o que estou dizendo certamente faz uma boa idéia do sentimento que teremos no dia da salvação! Lembro-me que correram-me lágrimas naquele instante: We are the champions...
       Arambaré é conhecida como a cidade das figueiras, elas estão por toda parte, inclusive na beira da lagoa. Seu principal ponto turistico é a suposta maior figueira do Brasil, com uma copa com mais de cinquenta metros de largura.


Vai aprender a tirar foto


    Arambaré reinvindica para si, também, o título de melhor carnaval da Costa Doce, rivalizando com São Lourenço do Sul. Deve ser realmente muito bom, pois tive a oportunidade de conhecer o de São Lourenço em 2007 e ele é mesmo incrível, não só pelos desfiles das escolas, que não ficam nem um pouco atrás das escolas de Poa - donde pode se concluir que deixam as de São Leopoldo comendo poeira - como, e principalmente, pelos foliões que no intervalo dos desfiles invadem a passarela travestidos - é engraçadissimo! Pelo folder que recebi na prefeitura, Arambaré, que tem menos de 4000 habitantes ,chega a receber 30000 turistas no feriado de carnaval. 30000 turistas em quatro bairrinhos de algumas quadras cada, deve ser um fervo, imagine como fica a travessia na ponte João Goulart! Além da figueira gigante, três são os outros pontos turisticos da cidadela: um antigo engenho, um barquinho e uma plataforma. A próxima foto mostra a imensidão da cidade:



     O fundo da lagoa em Arambaré é cheia de mexilhões e algas, os quais é inevitável não pisar, não chega a machucar, mas é desagradável; esse é o único ponto negativo. Arambaré deixou-me saudades: tão pequena, tão singela, acolhedora, com boas pousadas com preços bem baixos. Fiquei três dias numa e paguei só setenta mangos, tinha ventilador, geladeira, fogão, televisão, cama de casal, churrasqueira e até vara de pescar! Mas o melhor de tudo é certamente as pessoas: discretas, humildes, educadas, de bom gosto... e branquinhas de olhos claros!

o antigo engenho
o barquinho e a plataforma





centro de Arambaré: "bombando"





Próximo parada: São Lourenço do Sul!




terça-feira, 29 de março de 2011

Arte e Valor

O presente trabalho pretende fazer uma apresentação de como dois críticos de arte, Clement Greenberg e Harold Rosenberg, procuram fundamentar a experiência estética de duas diferentes correntes de vanguarda, respectivamente, a arte abstrata e a action painting (gestualismo), bem como o valor do objeto artístico na arte moderna e contemporânea. Clement Greenberg enfatiza o caráter formal da arte de vanguarda, mostrando como o abstracionismo se deriva de uma supressão do tema/conteúdo em prol da imitação dos próprios meios da produção artística. Harold Rosenberg, por sua vez, procura mostrar como a subjetividade do artista, inserido em seu contexto social e político, não pode ser isolado da apreciação da obra de arte final, uma vez que a arte, ao menos a action painting, é essencialmente uma ação e, visto que se deriva do expressionismo abstrato, trás junto consigo a crise e o desespero que impulsionam o artista a ação criativa. Já no que diz respeito ao valor da obra de arte, Greenberg ressalta a arte abstrata como o último estágio de uma evolução histórica e, portanto, como a mais superiora forma de arte relativamente a essa realidade histórica. Rosenberg, por outro lado, ao associar a sua corrente com uma metafísica da individualidade, reivindica para ela o mérito da fidelidade para com a tradição que toma o ser humano como tema supremo da pintura.


Clement Greenberg

Um fenômeno filosófico que mudou os rumos da cultura ocidental e balizou o século XIX foi o historicismo. Certamente esse fenômeno teve como principal pioneiro o pensamento hegeliano; embora tenham existido manifestações anteriores da ênfase na história para o empreendimento de compreensão da realidade, como é o caso da filosofia de Vico, nenhuma dessas atingiu grau de influencia e relevância próximos da filosofia de Hegel. A importância da história para o pensamento do século XIX pode ser ilustrada através de dois dos seus maiores representantes, Marx e Nietzsche. Ambos atribuem um papel fundamental a ela: para o primeiro, o materialismo histórico; para o segundo, o método genealógico. Sob o influxo do conhecimento histórico, ocorreu um alargamento da consciência dos indivíduos cultos; esses, ao reconhecerem a gênese de sua cultura e valores, reconheceram, ao mesmo tempo, o seu caráter contingente – uma vez que se originam de circunstancias históricas particulares. Com isso, o peso normativo desses valores foi comprometido; a tradição já não era mais acatada de forma inconteste. O conhecimento das relações causais que engendraram os múltiplos aspectos da realidade que lhes era atual permitiu aos indivíduos colocar tudo aquilo que até então havia sido tomado como as mais sagradas verdades sob suspeita. Surgia uma aguda crítica da sociedade e da história e, com essa, uma onda de negação dos valores tradicionais. Politicamente, essa onda se manifestou nos ideais revolucionários, como o marxismo e o anarquismo; esteticamente, surgia a boêmia e a vanguarda.
Com a dessacralização dos padrões sociais dominantes, operado pela crítica social, a antiga concepção sacra da arte, ou a serviço do sagrado, tornava-se obsoleta. No âmbito político, em virtude da revolução industrial, a burguesia tomava a posição antes ocupada pela aristocracia, de tal modo que a concepção de arte como educadora do caráter, do bom gosto e refinamento também perdia sentido. Qualquer papel formador ou moral que a arte havia tido até então passou a ser desprezado. Em suma, se a arte dependesse de qualquer ideal político, religioso ou ideológico, visto que esses estavam em ruínas, ela também estaria. A solução foi desvincular a arte de qualquer função pedagógica: surgia o esteticismo e o seu lema da “arte pela arte”. Ao mesmo tempo que a arte reclamava autonomia, os artistas se viam envoltos por um grande paradoxo: sua boêmia e sua arte pela arte consistia numa negação da burguesia e dos seus interesses filisteus; mas eles ainda dependiam das finanças burguesas para que pudessem continuar produzindo. Eles dependiam daquilo mesmo que repudiavam; só o patrocínio e a existência de um público burguês garantiam aos artistas as condições necessárias para que esses continuassem criando e fazendo arte – e desdenhando a burguesia. Essa contradição transformou o desprezo pela burguesia em desprezo por toda sociedade e pelos assuntos sociais e esse desprezo foi sentido pelos artistas como realização do seu projeto: arte pela arte. Como reflexo, as novas obras de arte fugiam ao tema, pois o tema imitava a realidade e a realidade continha um paradoxo que se desejava a todo custo evitar. Os artistas se voltaram então para o seu meio técnico de produção artística numa busca pela pureza da arte, i.e., daquilo que é essencial a ela, isolando-a do meramente contingente. É contingente a arte aquilo que não é arte, a dimensão política, ideológica ou religiosa que ela possa vir a adquirir. Tampouco é arte a expressão de sentimentos (como queria o romantismo) ou a comunicação de idéias ou qualquer outra coisa que diga respeito à subjetividade do artista. Além disso, é contingente para uma certa arte tudo aquilo que ela toma emprestado ou procura imitar de outras – “confusão das artes” –, como por exemplo quando uma pintura representa uma cena literária. É essencial a arte o meio que ela utiliza para se realizar: tintas, pincel e pinceladas no caso da pintura e suporte material no caso da escultura.
Com a supressão do tema, a arte abstrata erige a própria forma como seu conteúdo. Em virtude da valoração do meio, a pintura abstrata procura recuperar a planaridade própria a bidimensionalidade da tela e a escultura procura deixar, aqui e ali, partes do material original não esculpido ou uma textura não acabada (uma superfície de pedra não polida, tábuas ainda com felpas ou rachaduras na argila). Visto não imitar nada na natureza (ela imita a imitação, dirá Greemberg, i.e., os meios de produção artística), a arte abstrata não depende de nada externo a ela, ela vale por seus próprios termos e, assim, toca o absoluto. O novo artista brinca de Deus ao criar algo que, tal como o mundo, não pode ser reduzido a nenhum referente externo ou modelo original.
Essas considerações históricas a cerca dos motivos pelos quais a arte suprimiu o objeto/tema, bem como certo conhecimento dos meios técnicos da produção artística, além da intenção do artista de fazê-los transparecer em sua obra, se mostram, portanto, indispensáveis, não só para reconhecer o lugar da arte abstrata dentro da história da arte, mas, antes disso, para que ela seja capaz de despertar no receptor a experiência estética ao qual se propõe:

“Os valores últimos que o espectador culto encontra na pintura de Picasso são obtidos num segundo momento, como resultado da reflexão sobre a impressão imediata deixada pelos valores plásticos. E só então entram em jogo o reconhecível, o miraculoso e o evocativo. Estes não estão imediata ou externamente presentes na pintura de Picasso, precisando ser nela projetados pelo espectador sensível o bastante para reagir adequadamente a qualidades plásticas. Pertencem ao efeito ‘refletido’”

Deste modo, temos que a experiência estética depende da capacidade do receptor de refletir a cerca das qualidades plásticas em articulação com a realidade histórica e a evolução da arte. Mas, se por um lado a experiência estética da arte abstrata depende das condições subjetivas do receptor, no sentido de estar historicamente pronto para ela,
a altura de fazer a reflexão adequada sobre ela, o valor das obras de arte são objetivos – para a consciência coletiva da elite cultural de determinado tempo histórico. Essa objetividade se deve a evolução da história da arte. A arte abstrata é a melhor arte da atualidade devido a “um momento particular alcançado numa tradição particular de arte”; não há nada que a faça, dissociada da história, superiora as demais; sua superioridade não é metafísica, é válida nesse momento específico e de modo algum perpetuará eternamente.



Harold Rosenberg

Rosenberg afirma que a arte carrega consigo o artista, que a experiência estética da obra de arte não pode abrir mão do processo de criação e do fazer – artístico –, e que faz parte desse processo não só a ação e os gestos do artista, mas antes disso o contexto político onde ele se inicia, bem como o conhecimento pessoal do artista no momento da
criação. Fazer arte é agir e a ação artística é também uma ação política: “O pintor americano descobriu uma nova função para a arte como a ação que pertencia a ele próprio”. A principal característica da arte de vanguarda é que ela surge de uma crise não só da arte, mas de toda a sociedade:

“Quando se elimina da interpretação da obra os sinais que apontam para a situação do artista e as conclusões que ele extrai dela, o saldo final é substituir uma apreciação da dinâmica de crise da pintura contemporânea por um profissionalismo árido que é uma caricatura do esteticismo de meio século atrás”

O lema da arte pela arte elimina a experiência pessoal do artista, os seus sentimentos de confrontação, de impasse, de purificação enquanto cria. A action painting procura ser uma linguagem de descontentamento social e, além disso, recuperar o sentido metafísico da arte. Seu problema metafísico é o da individualidade: o artista ao pintar luta por uma identidade, essa luta pela identidade através da arte constitui a vida do artista, a vida do artista é uma afirmação da existência individual e da liberdade individual, o artista reproduz na força dos seus gestos, que resultam em manchas rompantes de tinta, o seu desespero em querer ser “Eu mesmo”. A action painting recupera o caráter ritualístico da arte, esquecido desde os gregos, a sua magia consiste na dança do dripping, i.e., em todos os gestos habituais envolvidos no fazer artístico agora executados automaticamente e segundo o impulso do desespero:

“O conteúdo da action painting é o drama de criação do artista no beco sem saída de uma época que identificou seus problemas mas deixou que eles se tornassem incontroláveis. Nessa situação, o desempenho criativo tem sido, via de regra, uma fase num ritmo de confusão, sofrimento, relaxamento e até autodestruição – ou, nos termos da fórmula de Thomas Mann, da aliança da criação com a doença, ao mesmo tempo moral e física.”

As pinturas são resultado dos pintores, não se geram umas das outras segundo uma lei impessoal. A arte é ação e a ação produto de uma crise. “Esquecer a crise –individual, social, estética – que gerou a action painting, ou ocultá-la, é distorcer de maneira grotesca a realidade da arte americana no pós-guerra”. A action painting possui uma contradição fundamental que a torna apropriada para a época de crise, seu dilema consiste em seu estatuto um tanto quanto dúbio: 1) não é pura ação, porque se o fosse não geraria pinturas e não seria arte, mas vida; 2) a sua pintura, que é produto da ação, não se basta em si mesma; o caráter de arte da obra está na conjunção entre pintura e ação. Pollock literalmente entrava dentro da pintura, mas no sentido figurado todo artista do expressivismo abstrato entra dentro da pintura, ao se marcar nela. O valor da arte consiste em não se reduzir a mediocridades formalistas que negam a individualidade e o ser humano como tema supremo da pintura. A respeito disso, Allan Kaprow diz:

“Jackson Pollock talvez fosse a encarnação de nossa ambição por uma libertação absoluta e um desejo secretamente compartilhado de virar as velhas mesas cobertas de quinquilharia e champanhe choco”.





segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Wicked Game - Chris Isaak




Jogo Malvado

O mundo estava queimando,

ninguém podia me salvar exceto você

É estranho o que o desejo

faz as pessoas tolas fazerem

Eu nunca sonhei que eu conheceria alguém como você

E eu nunca sonhei que eu precisaria de alguém como você



Não eu não quero me apaixonar

(Esse mundo sempre partirá seu coração)

Não eu não quero me apaixonar

(Esse mundo sempre partirá seu coração)

por você

(Esse mundo sempre partirá seu coração)



Que jogo malvado pra se jogar

Para me fazer sentir desse jeito

Que coisa malvada pra se fazer

Para me fazer sonhar com você

Que coisa malvada pra se dizer

Você nunca se sentiu desse jeito

Que coisa malvada pra se fazer

Para me fazer sonhar com você



Não eu não quero me apaixonar

(Esse mundo sempre partirá seu coração)

Não eu não quero me apaixonar

(Esse mundo sempre partirá seu coração)

por você



O mundo estava queimando,

ninguém podia me salvar exceto você

É estranho o que o desejo

faz as pessoas tolas fazerem

Não e eu nunca sonhei que eu amaria alguém como você

Eu nunca sonhei que

perderia alguém como você



Não eu não quero me apaixonar

(Esse mundo sempre partirá seu coração)

Não eu não quero me apaixonar

(Esse mundo sempre partirá seu coração)

por você

(Esse mundo sempre partirá seu coração)



Não eu

Essa garota sempre partirá seu coração

Essa garota sempre partirá seu coração

Ninguém ama niguém

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Aforismos do ano passado (não assumo nenhuma responsabilidade por eles)



I. Não existe rebelde sem causa, toda rebeldia é fruto de uma exuberância e dinamismo vital que visa à renovação, de uma eterna necessidade da vida de fazer infinitas tentativas pelos mais variados e imprevisíveis caminhos e possibilidades. Toda justificação da rebeldia é posterior a essa causa suprema e primordial e é motivada por uma prestação de contas às exigências da sociedade. Assim, toda rebeldia que procura justificar a si mesma é incompleta, visto que acredita dever explicações àquilo mesmo que se rebela.



II. Poder é aquilo que nos torna livres. Toda outra forma de poder é uma armadilha para escravizar ambiciosos. A liberdade é o poder.



III. Descobri o porquê de chamarmos uma comida de “chocha” quando essa está insossa ou sem viço: A palavra “chocha” é uma onomatopéia da língua japonesa... E língua é o que os japoneses não têm. Seus pratos podem até ser uma boa entrada ou curiosidade gastronômica, mas estão longe de propiciarem uma refeição! Com isso se explica também por que se tornaram um povo tão disciplinado: sua mesa nunca lhes foi fonte de prazer.



IV. Etiqueta na mesa – Algumas etiquetas originaram-se de um refinamento do paladar e, por isso, devem ser mantidas: como aquela que manda que jamais devemos cortar o alface, mas sim fazer um pacotinho de sua folha com o garfo; de fato, assim é exigido pela lógica – poética – do paladar, visto que o sabor muito sutil do alface jamais seria aproveitado em toda a sua potencialidade senão desse modo. – Aliás, nada é mais repugnante do que essas pessoas que adoram esquartejar a sua comida! Estraçalham o macarrão, em vez de enrola-lo no garfo! Fazem picadinho de sua carne, em vez de corta-lo à proporção que se come! –. Outras etiquetas, por não se derivarem de modo algum das exigências do paladar, e muitas vezes lhe serem mesmo contrárias, devem ser totalmente abolidas: é o caso da regra segundo a qual não devemos lamber o prato depois de satisfeitos – e como desejamos fazê-lo quando um prato verdadeiramente nos conquista! Faze-lo é a mais honesta forma de reconhecimento e quem o ousasse fazer por mera gentileza seria traído pela própria expressão de sua face; por isso, vale mais que aplausos ou mil palavras elogiosas.



V. O solitário primeiro se afasta das relações com estranhos, ele demanda certa intimidade para que se sinta compreendido. Depois, foge das relações íntimas, sentindo-se impotente para sustentar amizades – na medida que seus íntimos se relacionam com estranhos. Por último, ele já não consegue sequer estar em meio às pessoas, pois sente a sua solidão em evidencia; busca abrigo, então, nas sombras, longe da visão dos homens.



VI. O homem que nasceu para realizar algo e não o faz a de fazer todas as outras coisas de forma fracassada.



VII. O dom, quando ignorado, converte-se num demônio amante do erro.



VIII. O misticismo é a sabedoria da patologia.



IX. Entre todas as experiências a do êxtase artístico é, ao mesmo tempo, a mais digna e a única impossível de ser compartilhada. Essa contradição irreconciliável é a real causa da perdição das almas intensamente artísticas.



X. O homem afeito ao sublime a de sentir com o mais mortal dos tédios os períodos de sua ausência.



XI. O grande problema que enfrenta o escritor ao mostrar seus textos para conhecidos é que esses, visto que o conhecem, são automaticamente levados a associar o conteúdo dos textos à própria pessoa do escritor; e isso impossibilita o efeito de identificação tão indispensável para despertar qualquer sentimento mais forte e profundo para com o texto.



XII. Excetuando a exigência semiótica do eu-lírico na poesia, esse serviu aos poetas por duas razões – uma elevada e sincera e outra baixa e mentirosa: a primeira é aquela que permite ao poeta exprimir um ponto de vista e não se reduzir a ele, i.e., expressar uma perspectiva sem se comprometer inteiramente com ela; a segunda seria aquela de que o poeta, supostamente, não possuiria comprometimento algum com o que foi dito no poema, como se o seu enunciado não partisse de uma experiência, real ou íntima, do poeta. A primeira razão é produto de uma complexidade do espírito e anseio de liberdade, a segunda é covardia.



XIII. A cada nova inspiração, que impele ao início de uma nova obra, o artista sente-a como uma confirmação definitiva do seu triunfo: “É agora!”, “Finalmente!”, “Obrigado Deus por ter me escolhido!”... Mas tão logo a obra é concluída – se é que chega a sê-lo –, a inspiração se esvai e ele se vê novamente mergulhado na incerteza e insatisfeito com sua obra: “Ainda não foi dessa vez!”. Essa insatisfação, no entanto, é condição de possibilidade de uma nova inspiração.



XIV. O homem comum pensa de forma democrática a normatividade de suas ações: "Posso fazer tal coisa?” A resposta é sim se tal coisa puder ser feita por todos os outros, "Posso desdenhar a política? Não. Porque se todos os homens desdenhassem a política a sociedade entraria em colapso". Já o homem distinto pensa: "Tenho mérito para fazer tal coisa?", "Sou suficientemente bom/talentoso/distinto para me comportar assim?" Ele não precisa basear a normatividade de suas ações nos outros porque sabe que os outros continuarão pensando de maneira democrática e, conseqüentemente, não fazendo aquilo que ele se permite fazer.



XV. Hoje, é o pensamento democrático que permite o pensamento aristocrático. E isso não é ilícito senão para os que pensam democraticamente. Por isso, muitos homens essencialmente aristocráticos preferem defender valores democráticos: numa sociedade sem escravidão, só uma massa bem comportada permite que alguns indivíduos não se comportem como o esperado. Só mesmo um ser tão louco como eu, tão filósofo, para denunciar as próprias artimanhas das quais depende. Mas, como nos é próprio, permito-me essa honestidade pois sei que os demais aristocratas não farão aquilo que me permito fazer.



XVI. Se os artistas pensassem segundo o imperativo categórico, não haveria artistas.



XVII. Queres consolar uma pessoa que está se sentindo diminuída? Fale de outra em situação pior, de preferência uma que ela conheça. Queres diminuí-la ainda mais? Então diga-lhe que não há razão para ela se sentir assim e faça-lhe elogios com marcas de pessoalidade: “mas eu te acho inteligente”, “para mim tu não foi inconveniente”, “não me pareceu que tu agiste de forma esquisita”...



XVIII. Queres ter o ego agraciado? Então trate de agraciar o ego de um homem. Nunca somos mais propensos a “reconhecer”, por exemplo, a inteligência de alguém do que quando esse já reconheceu a nossa.



XIX. Em virtude do fim da separação ontológica do homem em relação aos demais animais, seja ancorada nos dogmas cristãos que concebem o homem como “imagem e semelhança de Deus”, seja na distinção aristotélica do homem como único animal racional, ou seja, com o advento da naturalização do homem na modernidade, torna-se crescente e mesmo modismo tendências vegetarianas e a defesa dos direitos dos animais. O que não se costuma perceber é que com o ocaso da religião e do aristotelismo não são os animais que ascendem ao nível dos homens, mas os homens que descem ao nível animal. A conseqüência lógica das premissas modernas não é que não devemos mais comer ou matar outros animais, mas que podemos, também, matar e comer homens.



XX. Contra aqueles que procuram defender características inerentemente humanas, o historicismo atual pensa ser capaz de refuta-los apenas dizendo: “mas isso é essencialismo!”. Como se o essencialismo fosse algo, por si mesmo, insustentável; não uma orientação de pensamento, mas algo pejorativo, a própria negação do pensamento. Com isso, no entanto, os historicistas apenas comprovam o quão são vítimas dos preconceitos de seu tempo histórico, i.e., como o seu “historicismo” é, no fundo, pouco historicista. Da mesma maneira, acreditava-se, na Idade Média, que um homem estava refutado caso se pudesse acusar sua opinião de heterodoxa ou antiaristotélica. A isso se acrescenta que a genética afastou qualquer mácula que o essencialismo poderia carregar consigo, tornando-o não só possível, mas muito provável. Se essa nova situação ainda não repercute no senso comum dos estudantes de ciências humanas isso se deve ao fato de que esses são sempre atrasados em relação ao fazer verdadeiramente científico.



XXI. Contra aqueles que procuram defender o egoísmo, a cobiça e o ódio mútuo entre os homens como características inerentemente humanas – e a decorrente situação de “guerra de todos contra todos” numa hipótese lógica de um “estado de natureza” – costuma-se sempre apelar às pequenas tribos indoamericanas. O que parecem se esquecerem os que fazem uso desse contra-exemplo é que essas não se encontram de modo algum em estado de natureza e tão pouco próximas dele – e é nesse ponto que poderia se acusar Hobbes de erro e de vítima de sua realidade histórica . Embora não exista nesses uma constituição e/ou leis na forma convencional européia, existe neles uma mitologia e uma religião que, como lhes é próprio, oferece uma normatividade para o comportamento e a ação dos seus membros, i.e., eles possuem um governo do tipo tradicional. Assim, a melhor forma de verificar se esses povos não possuem naturalmente as características supracitadas é averiguando se existe em seus mitos fundadores e religião, algum mito exemplar contra a ação egoísta, cobiçosa, etc... Uma cultura não formularia um mandamento tal como “amai o teu próximo como a ti mesmo”, caso seus membros fossem naturalmente impelidos a isso, do mesmo modo que não há notícias de um mandamento que exorte “copulai”. Somente quando algo oferece risco para a coesão social é que nascem mitos exemplares, mandamentos e leis que se lhe oponham.



XXII. Não só as pequenas tribos indoamericanas não servem de contra-exemplo contra a posição essencialista do egoísmo humano devido a sua religião, mitologia e tradição – até que uma pesquisa empírica comprove a ausência de mitos exemplares no que se refere ao egoísmo –, mas também devido ao número bastante restrito de membros dessas tribos, normalmente em elo de parentesco – e o egoísmo não é necessariamente um egoísmo individual, mas familiar –, além do fato da organização política dessas tribos ser baseada na autoridade patriarcal, onde é conhecido o recurso à ameaça da castração contra os filhos/súditos que buscam mais poder. Mas tão logo determinada sociedade cresce, os elos de parentesco vão se tornando menos nítidos e com eles a autoridade patriarcal; de tal modo que os egoísmos individuais sentem-se, então, livres para a disputa pelo poder. É nessa altura de desenvolvimento que passam a se fazer necessários leis e medidas punitivas e surge o governo civil. Isso aconteceu não só na Europa e Ásia, mas com o Império do Mali na África e, nas Américas, com os Incas, Maias e Astecas.



XXIII. Não há mito exemplar contra o egoísmo – e o orgulho! –, contra a busca pelo poder e o desrespeito à autoridade mais representativo do que o de Lúcifer. Com ele a ameaça iminente da castração real torna-se ameaça transcendente de castração espiritual.



XXIV. Grande parte dos estudantes das ciências humanas é indigna de crédito porque são totalmente incoerentes: pretendem submeter todo o conhecimento a esfera subjetiva e tomam seus valores morais como objetivos.



XXV. O que muitas vezes sucede aos estudantes das ciências humanas é uma total ignorância das naturais, o que os faz deterem-se muito às pequenezas humanas e ignorarem a posição dessas em relação ao restante. O que é cinco mil anos de história humana em relação aos três bilhões de anos de evolução da vida na Terra? E o que se dirá então em relação aos cerca de quinze bilhões de anos do universo? O que é o planeta Terra em relação ao restante do cosmos? E o homem? Poeira cósmica!



XXVI. Não conheço maior negação à pluralidade do que a ideologia do pluralismo. A ideologia do pluralismo só aceita em seu seio, pluralistas. A lei natural e filosófica da pluralidade, por sua vez, mais que aceitar, deseja, não só pluralistas, mas também antipluralistas. A barulhenta e exaltada defesa da diversidade, hoje na moda, é, no fundo, rancor contra a diversidade.



XXVII. É comum em nossos dias os indivíduos que apóiam o pluralismo e o multiculturalismo se dizerem de “oposição”. O irônico nisso é que pluralismo e multiculturalismo são justamente a última versão do pensamento capitalista e globalizado, aquele que deseja expandir seu mercado – e para isso respeitar o seu cliente: “o cliente tem sempre razão!”. Qualquer cultura genuína a de negar a outra na exata medida que se afirma.



XXVIII. No aforismo anterior podemos perceber o quanto a cultura ocidental ainda é genuína: defendendo o multiculturalismo próprio aos seus interesses, nega o monoculturalismo das outras.



XXIX. Que a cultura ocidental seja superiora em poder em relação as demais é algo incontestável, a história e os fatos nos atestam; e que esse poder venha a nos levar a autodestruição em nada contradiz a nossa afirmação, pois como diziam os estóicos “o homem é superior aos demais animais porque é capaz de tirar sua própria vida”.



XXX. Comemoramos com nossa boa consciência o fato das disciplinas de História e Literatura, tanto Africana como Indígena, terem sido incorporadas ao plano de ensino dos níveis fundamental e médio da educação brasileira, acreditando que isso representa um passo adiante na luta contra o etnocentrismo europeu. “História” e “Literatura”, no entanto, não são conceitos por demais europeus para que sejam transplantados à culturas a eles estranhas? A tradição oral desses povos não passa a milhas de distancia da pretensão, respectivamente, científica e artística de tais conceitos? Não? Então, por que tanta fúria contra o valor científico de Homero? À parte a ilusão anti-eurocentrica, com certeza essas novas disciplinas são importantes para que compreendamos a formação da identidade brasileira, não tanto, é verdade, como são importantes o Grego e o Latim para a formação da identidade humana atual.



XXXI. Ao contrário do que costumeiramente se pensa, a paranóia não constitui em insanidade. Está mais sujeito a ela quanto mais racional for o homem.



XXXII. Temos todas as razões do mundo para desconfiar dos outros, mas para confiar neles apenas um vago desejo, algo muito mais produto dos afetos do que da razão.



XXXIII. Há dois tipos de loucos, os que são pouco racionais e os que o são em excesso.



XXXIV. A única loucura que podemos atribuir à paranóia consiste na loucura própria de ser excessivo e sistematicamente racional. Portanto, contra a paranóia é necessária certa dose de loucura.



XXXV. Se fosse dada ao paranóico a possibilidade de direcionar suas desconfianças, por certo que teríamos grande avanço na Ciência e Filosofia. O paranóico possui as duas virtudes mais caras ao pensador: a suspeita e o ruminar incessante.



XXXVI. O homem paranóico descobre verdades que permanecem imperceptíveis aos demais. Sua perdição está em colocar essas sacadas geniais a serviço de suas absurdas construções fantasmáticas.



XXXVII. Se fosse a intensidade dos sentimentos que fizessem de um homem santo ou libertino, o juízo final teria grandes problemas conosco.



XXXVIII. Os homens possuem a necessidade de rirem-se uns dos outros.



XXXIX. Não dê importância àqueles que te censuram por rir das deficiências dos outros; eles só querem deixar a tua vida tão triste quanto a deles.



XL. Não há nada que nos faça rir mais do que ver o próximo em uma situação ridícula e embaraçosa, pois a diversão não é isenta de egoísmo e as deficiências do outro são sempre uma agradável elevação de nós mesmos; isso pode ser comprovado vendo em que circunstâncias os macacos riem e explica a tão comum rabugice dos puritanos e moralistas.



XLI. Um homem não é superior por não rir dos outros, mas o é quando além de rir dos outros é capaz de rir de si mesmo.



XLII. O que para a grande maioria, nunca tomada por profunda indagação filosófica, é uma obviedade, para aqueles desgraçados por ela é – ao menos – um passo firme e seguro num mundo cheio de incertezas.



XLIII. A existência da aposta demonstra convicções não baseadas em razões. Não somos capazes de dar razões para determinada crença, mas, ainda assim, estamos dispostos a apostar valores altíssimos por ela. Isso comprova não só que o domínio dos motivos é muito mais amplo do que o das razões, como também que alguns motivos são tão ou mais confiáveis que as razões.



XLIV. Muitos motivos são razões esquecidas. Se alguma vez eu cheguei a determinada convicção através de um raciocínio, e se o tempo fez com que eu me esquecesse das razões que o fundamentavam, agora essa convicção me aparece apenas amparada em motivos, mas ainda eles me são suficientes e totalmente conclusíveis.



XLV. Um homem com muitas convicções e poucas razões que as sustentem é geralmente mal visto. De fato, essas criaturas cheias de certezas – ideologias e fé – não abertas ao escrutínio crítico e a defesa bem argumentada são realmente desprezíveis. Mas é preciso um cuidado para que não cometamos uma injustiça: devemos averiguar se essa pessoa não é apenas alguém com a memória fraca; devemos ver, também, se com as situações presentes esse individuo não é capaz de formular raciocínios bastante sofisticados, amparando suas posições recentes em razões convincentes; se esses pontos se confirmarem verídicos, esse indivíduo de modo algum é digno de descrédito e é de bom tom levar em consideração os seus motivos.



XLVI. Equívoco na avaliação corriqueira do quociente intelectual – Um homem com uma memória ampla, ainda que vagaroso no assimilar e estreito no entendimento, goza, muitas vezes, de uma reputação de mais inteligente do que um homem de grande entendimento e rápida assimilação, porém com uma memória parca. Pois que o primeiro lembra daquilo que assimilou e compreendeu, ainda que com grande dificuldade e penoso esforço, já o segundo pode parecer, muitas vezes, um charlatão ou um pedante que diz saber mais do que verdadeiramente sabe, comportando-se tal como se soubesse, mas que quando convidado a apresentar suas razões não o faz ou o faz de maneira desastrosa. Se interrogados por terceiros a respeito da verdade ou falsidade de A, supondo que os raciocínios incorretos e pouco penetrantes do primeiro o levaram a crer em A, e o segundo chegou, conforme ao seu raciocinar elaborado e arguto, a saber não-A; é muito provável que os terceiros se inclinem a acreditar no primeiro, pois esse conseguiu apresentar as suas razões – ainda que débeis – de crer em A, enquanto que o segundo foi incapaz de lembrar suas – corretas – razões. Esse último não será tomado de profundo desprezo por todos os “terceiros”? Por todos aqueles que querem ser persuadidos por outros a respeito das coisas que não são capazes de pensar com suas próprias cabeças? E já por toda a comunicação e crédito ao outro? Com que revoltada agonia já não ouvimos ele praguejar, pregado em sua cruz: “Oh Mnemósine! Por que me abandonastes?”



XLVII. Aos que são incapazes da pura contemplação das idéias e não tem por elas, em si mesmas, amor suficiente, deveria ser vetado o estudo da Filosofia. Até para a defesa do sensualismo tais atributos são requisitos indispensáveis. Filosofia é e será sempre idéias e amor as idéias.



XLVIII. Os estudantes de Filosofia de hoje carecem do próprio sangue da mesma, aquele que correu nas veias de Sócrates e o condenou a tomar cicuta, que queimou Giordano Bruno no Tribunal da Santa Inquisição e que condenou Schopenhauer a ter como único companheiro o seu poodle, Atma. Falta-lhes honestidade intelectual, fidelidade para com os próprios olhos e a decorrente desobediência e disponibilidade para correr riscos e cometer sacrifícios. Sua preocupação central é com a profissão, não com a vida. E tudo o que eles mais desejam, sucesso acadêmico, é justamente aquilo que mais impossibilita o sucesso filosófico.



XLIX. Como arranjar forças para tais riscos e sacrifícios senão por meio da apreciação estética do Filósofo?



L. A psicose faz com que o homem deixe de reconhecer os significados que emanam da realidade e passe a ser um significador da realidade. É preciso ainda outro deus?



LI. Diálogo:

– Eu sou!

– Mas tu mudas. Acaso tens medo da mudança?

– Se tivesse, não seria.



LII. Dizer que o trabalho é uma propriedade nossa ("o trabalho é a única propriedade do proletariado" Marx) é dizer que o corpo é nossa propriedade, visto que o trabalho nada mais é senão potência (conatus) do corpo. Mas dizer que o corpo é uma propriedade nossa é supor que existiríamos sem ele, o que não é muito consistente com o materialismo e ateísmo marxista. Nosso trabalho só pode ser propriedade de outro, uma vez que só a outro é permitido ter posse de nós mesmos (dos nossos corpos).



LIII. Não há nada mais reacionário que a posição revolucionária, sempre que o capitalismo age em nome do “progresso”, a oposição reage.



LIV. Os pais possuem culpa sim por aquilo que seus filhos se tornaram. Mas isso não é motivo de revolta, afinal eles não possuem culpa alguma de terem culpa.



LV. Antes do conhecimento da genética e da bioquímica, antes mesmo da própria química, quando os seus processos eram vistos como alquimia, que não deixava de conter em si certa dose de magia e sobrenaturalidade – porque eram paranormais –, é natural que se desse alto crédito ao arbítrio humano, afinal haviam homens, por exemplo, que levavam uma vida asceta, de total abstenção sexual. Aos outros homens, cujo instinto sexual era forte, como na maioria dos casos (e, portanto, como na “normalidade”, entendendo “normalidade” como “generalidade”), essa “escolha” não podia lhes passar indiferente, é certo que eram tomados por admiração, pois que as suas necessidades sexuais eram-lhes causadoras de inúmeras atribulações e sem tais necessidades todas essas atribulações cessariam. Não podiam deixar de ver nisso então certo heroísmo de escolha e expressão de força de vontade e, avaliando a atitude ascética do outro segundo a potência com que o instinto sexual pulsava em si mesmos – pois que eles não poderiam ter acesso a outra potência que não as suas próprias –, julgavam ainda que tal homem tinha algo de sobrenatural e divino (visto que tinha de paranormal, de diverso da generalidade) e tal raciocínio se dava porque, para eles, seria de fato sobrenatural que vencessem o próprio instinto sexual. Pois bem, assim como raros processos químicos, “paranormais” poderia se dizer, são hoje admitidos dentro das leis naturais, não possuindo nada de sobrenatural, também que alguns indivíduos de uma espécie não possuam características gerais da mesma – ou mesmo da própria vida – é algo admitido pela biologia como natural – enquanto disfunções hormonais e bioquímicas que respeitam aquela vontade da natureza, de que falam os neodarwinistas, de procurar a maior diversidade de caracteres dentro de uma espécie. Vejamos os padres: a maioria, cujo instinto sexual é forte, desrespeitam o celibato; outros, com a mesma constituição fisiológica, mas cuja fé oferece-lhe resistência, tornam-se sexualmente reprimidos e acabam cometendo atos de pedofilia – ele se identifica com o infantil porque o sexo tem-lhe qualquer coisa de feio e de proibido (como para as crianças) –; por fim, os “exemplares”, mesmo que sejam acometidos pelo desejo sexual, esse não é forte, de tal modo que, mesmo que a ele pareça uma tarefa árdua vence-lo “agarrando-se a Cristo”, não lhe é impossível, dado a pouca intensidade do seu libido. E a esses últimos as carolas veneram como exemplos de fé.



LVI. Muitos repudiam o determinismo porque pensam que com ele não poderíamos mais atribuir valores às ações e ao caráter de um homem, visto que esse não teria responsabilidade ou mérito algum naqueles. Ora, devotamos toda a nossa admiração à beleza e sempre estamos dispostos a valorizar a inteligência ainda que seus portadores não tenham mérito algum em os possuírem.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Não há outro caminho

"Os poemas podem ser desolados
como uma carta devolvida,
por abrir. E podem ser o contrário
disso. A sua verdadeira consequência
raramente nos é revelada. Quando,
a meio de uma tarde indistinta, ou então
à noite, depois dos trabalhos do dia,
a poesia acomete o pensamento, nós
ficamos de repente mais separados
das coisas, mais sozinhos com as nossas
obsessões. E não sabemos quem poderá
acolher-nos nessa estranha, intranquila
condição. Haverá quem nos diga, no fim
de tudo: eu conheço-te e senti a tua falta?
Não sabemos. Mas escrevemos, ainda
assim. Regressamos a essa solidão
com que esperamos merecer, imagine-se,
a companhia de outra solidão. Escrevemos,
regressamos. Não há outro caminho."

Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno 2005.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

No Reino da "graça"

Se “graciosa” chamamos a donzela com jeito e graça
E palhaço que sabe fazer graça, dizemos “engraçado”
Lúcifer é por rabugice ou descompostura desgraçado?